terça-feira, 1 de maio de 2012

Breve Fábula Sobre as Pequenas Empolgações Coletivas


...e diante de toda a confusão dos dias atuais, o velho registrador dirigiu-se aos pais da criança:

- E o sexo? Qual será o sexo dela?

Os pais, que até então não haviam conversado a respeito, concluíram que a natureza deveria decidir. Não consideravam justo impor à filha que representasse um ou outro papel na vida. Afinal – disse o pai, com o dedo em riste -, “quem define, limita”.

A isso se sucederam aplausos, lágrimas, gritos de emoção. Um vereador da pequena comuna proferiu um discurso inflamado sobre a liberdade do ser. O circo fez questão de desfilar pelo centro da cidade, e sobre o grande elefante branco foram cosidas as insígnias da modernidade: "Liberté, Egalité, Fraternité". Projetaram a construção de um enorme pórtico na entrada do lugarejo, para ilustrar a grandeza do povo local. Um filósofo grego, dado por morto há séculos, tornou a lecionar na praça central. A pacata cidade viveu os seus mais belos dias - dias de eufórico idealismo.

Alheio à empolgação geral, o escrevinhador assentou, serenamente: “A ver”.

E depois certificou: “Pais ausentes do ato”.

Rufino



Rufino era malandro.

Boina gasta, cigarro sem filtro na boca, havaianas nos pés, caminhava pelo calçadão com pose mas dinheiro de um rufino qualquer.

Era o que era, gente boa.

Só não gostava de playboy metido à besta - “malandro é malandro, mané é mané”, plagiava.

Dinheiro pouco nunca foi problema. Lá pelo fim do mês aprochegava-se daqueles poucos que ainda não tinham bebido o salário inteiro – coisa cada vez mais rara no bairro, pensava o Rufino economista-de-bar.

Animava a roda de samba do Bar do Cartola até a madrugada, até de manhã, fosse preciso.

Tinha mulher boa em casa.

Filhos no exército.

Rufino era boa praça.

Daí por que o rebuliço todo em torno de sua morte.

Devia pouco no Cartola, que acima de tudo era seu amigo de infância; os filhos moravam distante, sem contato; a mulher falava nada, presumiu-se que também não o faria.

O bairro parou. Das varandas todo mundo acusava todo mundo. Qualquer movimento em falso era motivo de desconfiança.

Como era questão de honra, os moradores de bem aceitaram de bom grado uma série de medidas policiais que em outros tempos seriam tachadas de autoritárias.

Teve gente inocente que ficou anos sem sair de casa. O trem que cortava o bairro passou a ignorar a estação: os viajantes não vinham mais, tamanha barafunda misantrópica.

Muita abstração, pouco empirismo. O delegado desistiu, encerrou o caso e foi pro bar sentir falta do amigo.

Sem suspeitos, criou-se o mito: Fúlcio Rufino – cujo corpo sumira, ficou somente uma mancha de sangue no tapete sujo da sala – foi pra outro bairro, pra praia, pra europa, até foi visto em filme na tv.

Voltava logo, o Rufino.