terça-feira, 3 de abril de 2012

Carouselambra



Consultório frio, escuro, impessoal. O tiquetaque descompassado de um velho relógio de parede amplifica o silêncio imposto pela soberba autoridade médica. A luz opaca, que entra pela tímida janelinha de subúrbio, dá o tom cavernoso que a ocasião dispensa. Anamnese, seguida de auscultações por todo o corpo. A secretária entra e sai num passo rápido e nervoso, suscitando a ideia de que algo realmente está a acontecer.

O paciente sua frio. Pensa na família, na conta da padaria que a mulher talvez esqueça de pagar, no filho que sonha em ser jogador de futebol, mas que - o bairro todo sabe - antes deve resolver se quer ser homem ou mulher. Pensa até na mãe, jogada num asilo subsidiado por alguma obscura fraternidade de freiras antropófagas. Lembra que nunca aprendeu francês - "mas pra que porra isso ia servir agora, mesmo?", desanima.

Do lado de fora vem um miado, subitamente interrompido por um estampido e substituído por milhares de latidos intermitentes. "Antes o gato que eu", alegra-se. Em seguida cogita se não seria melhor morrer assim - um balaço na testa, sem dores nem remorsos.

O doutor, que havia saído em posse de um formulário amarelado com uma cruzinha em cima (ao que pôde ver, era uma cruzinha, tinha quase certeza), retorna ao consultório. Em tom áspero, sem a mesmo cerimônia dos tempos em que ajoelhava perante o juramento de hipócrates, sentencia:

- A próclise está mal, a mesóclise está fora do lugar e a ênclise... bem, a ênclise eu nem encontrei.

"Estou doente", pensa um moribundo cheio de vida. "Terrivelmente doente".

Nenhum comentário:

Postar um comentário